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Lau Papalagui
© Vitorino CoragemLau Papalagui

É Caótica, faz 15 anos e está sempre a pensar no futuro

Há 15 anos que a Caótica desafia as fronteiras entre linguagens artísticas e a criação para um público mais jovem. Sentámo-nos à conversa com Caroline Bergeron e António-Pedro, fundadores da companhia, e a actriz Manuela Pedroso.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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O sol está no alto e a Praça cheia quando chegamos ao Martim Moniz. Temos encontro marcado com Caroline Bergeron e António-Pedro, que há 15 anos fundaram a Caótica e agora preparam-se para fazer a festa com a reposição de um espectáculo e a estreia de um documentário. Entre a resistência à precariedade e o arrojo multidisciplinar, há muito para celebrar, incluindo o escritório que arranjaram há quatro anos e onde nos recebem, acompanhados pela actriz Manuela Pedroso. Não podiam estar mais entusiasmados. A festa arranca a 8 de Maio, na Biblioteca de Marvila, e prolonga-se até dia 11, antes da segunda ronda, lá para o Outono. Antes, antecipam a programação de aniversário e propõem-se a reflectir sobre o caminho já percorrido e o que ainda está por desbravar.

Para contar a história da companhia, é preciso recuar no tempo, ainda antes da sua fundação, quando Caroline, que foi co-directora artística do belga Tof Théâtre durante uma década, conheceu António-Pedro e acabou a mudar-se para Portugal. “Eu vivia na Bélgica, trabalhava na área há muitos anos e já tinha criado vários projectos para o Centro Cultural de Belém. Foi no decorrer num desses projectos que conheci o António. Apaixonámo-nos e voilá”, resume. “Dois anos depois estava cá a viver e decidimos criar uma companhia.” O nome, esse, foi um longo debate. Quem o diz é António: “Por um lado, queríamos homenagear Portugal. Por outro, que tivesse sentido de humor, porque gostamos de trabalhar essa dimensão nas nossas criações, ao mesmo tempo que falamos de coisas que nos importam e nos inquietam. A ideia de caos tem conotações negativas, mas no princípio era o Caos, não era?”, pergunta, evocando um dos deuses primordiais da mitologia grega. “Quando pensamos em caos, pensamos em tudo misturado, e nós de facto não fazemos distinção entre disciplinas – não nos interessa saber onde é que começa uma coisa e acaba a outra –, e os mais novos também não.”

Caroline Bergeron, António-Pedro e Manuela Pedroso
© Arlei Lima/ Time Out LisboaCaroline Bergeron, António-Pedro e Manuela Pedroso

Apagar as fronteiras, descobrir diferentes formas de fazer, criar de forma colaborativa. É assim que a Caótica se tem distinguido no sector das artes performativas, sobretudo no que à criação para as famílias diz respeito. António até já utilizou jogos de dança ou de teatro para desbloquear argumentos. O segredo talvez seja o desmontar da ideia do que é criar para espectadores mais jovens. Para Caroline e António, é óbvio que não há uma forma específica de falar com as crianças, que o melhor é procurar universalidade e esquecer o preconceito de que os miúdos não têm sensibilidade ou tanta sensibilidade quanto os adultos. Às vezes é ao contrário: estão mais abertos. “Com a experiência, vamos percebendo até onde podemos puxar”, assegura Caroline, antes de explicar que procuram criar espectáculos que possam ser vistos por adultos. “O facto de um adulto apreciar o que fazemos não confere mais valor ao espectáculo. O que eu não quero é fechar a infância em parâmetros psico-educativos.”

O problema, revela Caroline, é a forma como se entende a programação para crianças e jovens. A escola tende a escolher espectáculos que servem o currículo e esse critério deixa de fora muitas outras propostas, que também por isso têm maior dificuldade em conquistar espaço. “Fica de fora a eventual singularidade dos artistas que têm as suas inquietações, que não são necessariamente as mesmas que as da educação formal”, acrescenta. “Há uma domesticação. Do meu ponto de vista, é como se considerassem a criança uma espécie de ser incompleto.” Mas um espectáculo é muito mais do que aquilo que pode ensinar a quem o vê. Às vezes nem percebemos, mas sentimos na mesma. A racionalização do espectáculo, da mensagem, das possibilidades de interpretação, pode chegar mais tarde. O momento imediatamente a seguir é ainda um tempo, relembra Caroline, de sentir e de processar. “Estamos envolvidos, a pensar no que vimos e ouvimos, ainda com tudo muito à flor da pele. E o que um espectáculo nos faz sentir é muito mais complexo do que aquilo que nos possa querer dizer.”

O caminho é para a frente

Chegar à adolescência com uma companhia de teatro neste país, com a alocação que vai para a cultura e com as dificuldades de programar e de encontrar espaços de ensaio, não é pêra doce. Mas, quando não é possível mudar o sistema, só há duas coisas a fazer: resistir e circular. É o que a Caótica tem feito, dentro e fora de Lisboa, dentro e fora de Portugal. Descentralizar também é palavra de ordem, mesmo sabendo que o facto de terem levado mais espectáculos a diferentes regiões francesas do que portuguesas denuncia o desafio que é encontrar espaços com as condições técnicas necessárias para acolher trabalhos multidisciplinares. “Fomos conquistando espaço e fomos conquistando meios. Nos primeiros seis anos ou mais não tínhamos qualquer subsídio. Nem sabíamos como fazer uma candidatura. Depois, lá está, não há muitas estruturas que nos possam receber”, lamenta António-Pedro. “Mas o Sopa Nuvem [um espectáculo com filmes, música e sopa ao vivo], que circulou imenso lá fora, permitiu-nos aguentar.”

Como parte do programa de aniversário, Lau Papalagui, co-produção com a Fábrica das Artes do Centro Cultural de Belém, regressa à cena com sessões para escolas – nos dias 8, 9 e 19, às 10.30 – e para famílias e demais pessoas interessadas, a partir dos seis anos – no fim-de-semana, 11 e 12, às 15.30. Co-criação de Caroline Bergeron, António-Pedro e Gonçalo Alegria, o espectáculo inspirado na obra O Papalagui – Discursos de Tuiavii, Chefe de Tribo de Tiavéa nos mares do Sul, de Erich Scheurmann (publicado em português pela Antígona, com tradução de Luiza Neto Jorge), torna o público testemunha do embate entre Cândido Gonzalez e os habitantes da Ilha da Macaroa, cobiçada pela Selva Resort para a construção do “Resort de Luxo Mais Selvagem do Mundo”. Manuela Pedroso interpreta a líder da tribo Tuiavii.

“Conhecia a Caótica e já seguia o trabalho do António antes, mas é a primeira vez que trabalhamos juntos”, diz Manuela. “Quando me convidaram, fiquei fascinada, porque é baseado num livro que conheço desde a minha adolescência, e foi todo um processo de descoberta, porque realmente eles são muito multifacetados.” Em palco, o teatro e o cinema confundem-se, e o texto evoca a actual crise da habitação e problemáticas relacionadas, desde a gentrificação à força destruidora do capitalismo e do mercantilismo. E do que estamos a deixar para trás: a natureza e as pessoas. Tudo por causa do que parece ser uma obsessão com produtividade – ter mais, produzir mais, ter melhor, produzir melhor, produzir, produzir, produzir. E usufruir? Para onde é que o tempo de usufruir, de aproveitar, de apreciar, vai? É o que vamos descobrir.

Além do espectáculo, está também prevista a estreia de Arte Pedras Liberdade, na sexta-feira, dia 10 de Maio, às 19.30. O documentário, fruto do projecto Conversas Emergentes, realizado em colaboração com o Plano Nacional das Artes, é resultado de uma jornada que incluiu entrevistas a crianças e jovens, além de residências, laboratórios e conversas, que percorreram o país a mapear as inquietações e desafios das pessoas que criam e programam para os mais novos. Com a presença dos realizadores, Caroline Bergeron e António-Pedro, e de Sara Franqueira, mediadora das Conversas Emergentes, o evento marca o compromisso da Caótica em proporcionar espaços de reflexão dirigidos à comunidade artística.

“Temos vindo a assistir a uma grande evolução na programação para a infância, há neste momento uma rede de teatros a funcionar, ainda que precariamente, e eu acho que as políticas públicas têm vindo a melhorar, até porque somos [o sector artístico] teimosos e persistentes”, remata Caroline. Mas há muito que falta fazer. A começar por reflectir sobre práticas e concepções de infância, arte e educação. A ambição é simples: chamar a atenção para um ecossistema cultural que, apesar da qualidade, permanece “uma espécie de parente pobre da criação em Portugal”. “Está também a ser escrito um livro, que parte do documentário, mas esse lançamento fica para a segunda parte da festa, em Novembro. Nessa altura, até bolo haverá.”

Biblioteca de Marvila. Espectáculo para público geral: 11-12 Mai, Sáb-Dom 15.30. Estreia do documentário: 10 Mai, Sex 19.30. Entrada livre

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